DARLINDO NA CASA DO PAI…
No passado sábado, dia 18 de julho de 2020, depois de uns dias longos de hospitalização, pelo amanhecer, aos 75 anos de idade, a irmã morte veio visitar o nosso querido Irmão Darlindo Affonso Fernandes e conduzi-lo à presença do Pai, ao lugar preparado para os Bem Aventurados que sempre procuraram levar uma vida diante de Deus. Assim foi o Darlindo e, por isso, já canta a Glória de Deus na eternidade. O Darlindo era natural de Monção, terra por ele muito amada e da qual falava sempre com o coração, o sorriso e o olhar, terra onde nasceu a 28 de dezembro de 1945.
O seu Corpo foi levado nessa tarde para a Igreja da Imaculada Conceição, no Seminário da Luz, Convento dos nossos Irmãos Franciscanos onde o nosso Assistente, Frei Albertino Rodrigues (OFM), celebrou Missa das Ezequias, com vestes brancas como sinal de renascimento para a Vida Eterna. Concelebrou também o Frei Armindo Carvalho, ex Provincial dos Franciscanos OFM. Dadas as contingências próprias de quem vive o confinamento por causa da Covid-19, o tempo foi pouco para fazer chegar a muitos a notícia desta despedida em Lisboa, dado que a seguir o seu corpo foi levado para a sua terra natal, Monção, onde no dia seguinte foi sepultado e acolhida pela nossa Irmã, e Mãe Terra, como lhe chamava S. Francisco de Assis. De notar que mesmo assim foram muitos os presentes, entre familiares, Irmãos da Fraternidade e muitos amigos que não quiseram deixar de prestar esta última homenagem ao nosso Irmão.
Na terça feira seguinte, no Hospital da Ordem Terceira foi celebrada Missa por ele e durante 24 horas a Bandeira da Fraternidade esteve hasteada a meia haste. Também ali se celebrou uma semana depois Missa de sétimo dia, bem como na Igreja de Arroios.
Porque não posso, ou não consigo, ficar apenas por uma simples informação sobre a partida deste nosso Irmão, e perdoem ter demorado alguns dias a escrever mas “o coração tem razões que a própria razão desconhece”, como diz o filósofo, e o coração nem sempre nos deixa escrever quando devemos porque nem sempre é fácil buscar o que no coração se guarda e que nestas alturas empurra uma lágrima que teima em turvar os olhos e não deixar escrever…
Muitos irmãos da Fraternidade poderiam escrever belíssimos testemunhos sobre o Darlindo, tenho plena consciência disso. Muitos conviveram com ele muitos anos já que ele fora admitido à formação inicial nesta Fraternidade da Ordem Terceira de S. Francisco da Cidade, em Lisboa, no dia 15 de julho de 1984 e aqui fez a sua Profissão Religiosa e perpétua a 19 de junho de 2010, de acordo com o livro de Registos da Fraternidade. Viveu como Irmão Professo, e sempre presente durante mais de nove anos da sua vida. Nestes últimos anos o Darlindo pertencia ao Conselho da Fraternidade.
Nos últimos anos, sobretudo, o Hospital da Ordem Terceira Chiado era a sua segunda casa. Aqui sentia-se tão bem e todos o estimavam porque era muito natural ao Darlindo gerar à sua volta bem estar e arrancar sorrisos por onde passava.
Às terças e quintas-feiras logo de manhã vinha preparar tudo para a Eucaristia. Tomara a peito esta missão de servir ao Altar sem dar nas vistas. Depois distribuía os leitores e as folhas dos cânticos. Fazia tudo isto porque sempre achava que era a sua forma de servir melhor o Senhor presente na Eucaristia e de ajudar “Il mio fratello” para antes deste se paramentar para celebrar, irmos juntos tomar o nosso cafezinho, um em chávena escaldada, para ele, e outro com veneno (canela) para o “frater”. Que deliciosos momentos de convívio no cafezinho antes da Missa que nos levava depois a estar melhor e mais despertos para ouvir a Palavra e Comungar a Vida.
Era grande a sua alegria por poder ser útil na Capela, limpar os vasos sagrados e o cuidado que sempre punha a arranjar as jarras com flores, a dar ideias de possíveis ornamentações, sobretudo para os dias mais Solenes da Liturgia ou para as Festas de S. Francisco ou Nossa Senhora. O Darlindo trazia da sua casa toalhas em linho, rendadas, eram da sua mãe e porque eram lindas ele as trazia para embelezar por uns dias o altar que ornamentava. Algumas imagens e outros objetos antigos que agora embelezam a Capela foi ele um dos grandes impulsionadores, quer junto de mim enquanto Capelão e Assistente, quer junto de alguns irmãos sobretudo do Conselho da Fraternidade. Tudo o que era belo e de valor ele gostava que estivesse visível e não guardado porque o que era belo no espaço litúrgico levar-nos-ia mais facilmente a entender a beleza de Deus, dizia muitas vezes esta ideia por outras palavras.
Quantas vezes o víamos de joelhos a preparar tudo com uma dedicação e bom gosto. Até mesmo já nestes últimos meses em que o mandava estar quieto só a fazer companhia ele não era capaz, foi assim no Natal com o presépio, no início da Quaresma e a arranjar o jarrão das flores brancas para depois por em frente ao Altar. No tempo em que partilhei com ele o internamento na Casa de S. Francisco, íamos à Capela e ali ficava, com grande sacrifício, de joelhos diante do Sacrário, cabeça entre as mãos para sentir a oração vinda de dentro e rezava… Num dos dias mais difíceis de dor para ele, ali o deixei porque me pediu para estar sozinho… e como se demorasse vim sem fazer barulho ver como estava e ajoelhei-me cá atrás… falava alto com Jesus, num tu a tu que só os santos sabem ter com Ele, pedia interceção à Mãe e a S. Francisco e… dando conta a dada altura que eu estava lá atrás só disse “meu irmão está aí há muito tempo?”. Só lhe respondi que não, mas que quatro joelhos no chão em oração teriam certamente mais força do que dois. Momentos únicos e de uma oração tão profunda que jamais esquecerei. Era um homem de Missa e Comunhão diária, e não se deitava sem ter rezado o Terço a Nossa Senhora.
Sempre a pensar em estar atualizado, posso dizer que foi aí no HOTC que começou a dar os primeiros passos para entender a internet, com um simples tablet pedia pediu para o ensinar a ver o email, a guardar fotos, e a fazer video-chamadas. Depois veio um telemóvel e de novo o desafio da net o entusiasmou e graças a Deus porque foi desta forma que, nos meses de tratamento e hospitalização, era a net uma das formas de ver e falar com familiares e amigos. Muitos amigos, de longa data e que com ele tinham participado de Cursilhos de Cristandade, outro dos seus amores, muitos que se dizem hoje apaixonados por Cristo e pela Igreja através do testemunho de vida e de fé do Darlindo. Eu mesmo sou assistente de dois grupos vindos desses Cursilhos aos quais o Darlindo pertencia e era o grande mentor. Os cânticos “paz e bem”, o “de colores” e a “Salve Regina” eram as três músicas que o inundavam na hora de falar de si e da sua fé terminando sempre com o Pai Nosso e o Glória ao Pai…
Um irmão bem humorado, como já disse arrancava sorrisos e boa disposição por onde passava, cativava qualquer um e do nada ia buscar um humor fino. “Que porcaria”, dizia às vezes sobre o pequeno almoço ou o jantar para logo dizer que era melhor ir comer ali ao lado ao Bairro Alto, mesmo sabendo que nem forças tinha para dar uns passos. Recordar as surpresas que na casa de S. Francisco se faziam com miminhos ao lanche ou aquele pequeno almoço à Inglesa… muito obrigado!
E a si mesmo se chamava “Grã Duque d’Alba” ao sentar-se no cadeirão que se encontra no meu gabinete. Era na verdade um homem sorriso. Tenho certeza de que todos os que ledes estas letras recordais tantos e tantos destes momentos de boa disposição, como aquela noite em que, estando eu com dores, com a ajuda das amigas e cúmplices da Casa de S. Francisco vestiu a bata do Amigo e Irmão médico, estetoscópio sobre o pescoço e assim me aparece qual médico para vir ver o seu doente. Impagável tal momento, impossível imaginar a sua alegria ao fazer isto…
No Passado dezembro, aquando da Festa de Natal do Hospital e da Fraternidade, com a Casa de S. Francisco, apesar de estar doente e a fazer quimioterapia não deixou de entrar ativamente na festa e ali estava ele numa peça de teatro a fazer de S. José, o chamado Homem Justo. Mesmo nos dias antecedentes era giro ver como se ia resolver a questão das vestes e ele dizia que com uns trapinhos iam ficar bem vestidos os atores, “sim porque nós somos bons atores! Chavor! Chavor!”, para dizer se faz favor, se faz favor. O Natal era para o Darlindo um tempo lindo. A alegria ao percorrer comigo os espaços do hospital para fotografar os muitos presépios que se faziam. E este ano foram, se a memória me não engana, uns 28 presépios, mais que no ano anterior. Na sala da Casa de S. Francisco, onde subíamos para cantar cantos tradicionais de Natal com as utentes, funcionárias, familiares e amigos, o Darlindo com a sua voz e alegria bem se destacavam e depois, como dizia ao jeito bem humorado “a seguir temos paparoca”, um porto de honra para todos. A Casa de S. Francisco era o coração do Hospital, dizia ele, e sempre se sentiu ali muito amado, estimado e bem tratado. Este coração do Hospital pode ser também o coração da Fraternidade pois aqui somos como Francisco a cuidar com amor os mais fragilizados. Sei bem, tenho certeza da grande gratidão que o Darlindo tinha para com a sua Fraternidade e acima de tudo para com todas na Casa de S. Francisco…
Do amor que sempre nos mostrou ter para com Deus, quis o Pai do Céu dar-lhe sempre um amor maior, e o Darlindo tinha disso consciência, muitas vezes mo confidenciou em confissão ou simples conversa de Irmãos. Os últimos meses, quase um ano, foram de dura prova, de uma cruz que por vezes não foi fácil de levar, mas sempre mantinha todo o espírito e a fé de que atrás fiz testemunho. Foi uma cruz pesada que o conduziu ao braços do Pai. As últimas fotos que lhe tirei e aqui as deixo, uma sentado em sua casa depois de uma segunda feira em que o tirei de casa com mais um Amigo, com todas as seguranças, e devagarinho descemos um pouco a rua para jantarmos fora, na tasca do Miguel, um mês antes de partir, e a outra em Azeitão, lugar tão espacial para ele, em casa do Amigo Jorge, 3 semanas antes de partir, ali naquela ponta do miradouro, não via a cidade de Lisboa nem o Cristo Rei, mas sabia que era ali mesmo em frente se olhasse naquela linha do horizonte que lhe indiquei. E ali ficou por uns momentos a olhar para o horizonte onde sabia estar o Cristo de braços abertos… e rezou… e a meio desta semana quando nada o previa, teve que ser internado de novo antes em Setúbal e depois nos Capuchos em Lisboa para onde foi transferido.
Neste hospital onde passou muitas horas e dias deste ano, aproximando-se a partida e já autorizados a visitá-lo, foi-se despedindo aos poucos dos familiares que puderem vir a Lisboa e dos muitos Amigos… e foram mesmo muitos. O nosso querido Darlindo foi um Homem que amou… amou mesmo do fundo do coração a muitos, sofreu por muitos, e pediu o perdão antes de se deixar ir conduzindo para a Casa do Pai. Darlindo Fratello mio, perguntei, queres rezar e depois receber a absolvição dos pecados? Parou um pouco a olhar para mim… depois disse simplesmente “Quero! Quero! Quero!”.
Perdoem os muitos Amigos dos Cursilhos por não falar aqui dos nossos encontros, os Amigos de mesa, as mesas por ele sempre tão bem preparadas para nos acolher na sua casa, para simples convívio ou início de reunião de reflexão e oração e as Eucaristias. Perdoem os familiares por parecer que são esquecidos aqui mas não… a família de sangue que ele amava e para onde fugia na Páscoa, Natal, verão e depois vinha carregado com os miminhos que connosco partilhava. Mas da família de sangue fica a ternura da sabedoria do coração.
Perdoem os Irmãos da Fraternidade por este longo testemunho. Repito, muitos de vós tendes tantos e tantos testemunhos de vida e partilha com o Darlindo que poderiam ser mais ricos que o meu. Aqui quis deixar mais que uma mera notícia de morte. Aqui quis deixar um pouco da VIDA (e agora tenho que parar porque as lágrimas…), a Vida do nosso, do meu Irmão e Grande Amigo Darlindo. Tenho muitas saudades tuas Fratelo mio, muitas mesmo. Por tudo o que de ti recebi, porque tu me ajudaste a integrar nesta Fraternidade e nos teus grupos de Amigo, porque me deste um testemunho de Hombridade, Honestidade, Vida e Consagração Franciscana, um testemunho do Homem Grande que recordarei ao longo de toda a minha vida.
Darlindo, continua a cantar e a dançar… continua a rezar connosco ao Pai, ajuda-nos a ser Franciscanos no mundo ao jeito de Francisco… “Até quando, meu irmão?” foi das últimas perguntas que me fizeste… até já Darlindo… ali no cafezinho, na capela, nas memórias que só o coração de todos nós já guarda e onde sente saudade.
OBRIGADO MEU IRMÃO….
Fr. Albertino S. Rodrigues OFM