A História
A Fraternidade de S. Francisco da Cidade (Lisboa)
Perde-se na memória do tempo o início do movimento de leigos, inspirado pela forma de vida dos primeiros Frades Menores chegados a Lisboa em 1217: Fr. Zacarias e companheiro. Sabemos, porém, que a sua pobreza, desprendimento, alegria, simplicidade e liberdade evangélicas provocaram grande admiração.
A vida cristã, à sombra do pequeno eremitério erguido no Monte Fragoso (actual Chiado), teve tal incremento, que em poucos anos se transformou num centro de oração e de espiritualidade.
Aqui nasceu a hoje chamada Fratenidade da Ordem Terceira de S. Francisco da Cidade. Não possuímos registos de irmãos referentes a esses tempos, mas basta-nos saber, por crónicas antigas, que a ela pertenceu o nosso Rei D. Sancho II, do segundo quartel do século XIII.
Em 1577, o convento era limitado, a oeste, pela Rua do Saco (actual Serpa Pinto); a sul, pela Rua do Ferragial (actual Vítor Cordoa): a norte, pela Rua da Parreirinha (actual Rua Capelo) e a nascente, pela Rua de S. Francisco (actual Rua Ivens), o que levou o rei D. Filipe II a chamar-lhe a “cidade de S. Francisco” e Fr. Apolinário da Conceição, o “Bairro de São Francisco”.
Na igreja havia muitas capelas, incluindo a do Bom Jesus de Portugal, assento da Venerável Ordem Terceira de S. Francisco, em que se filiaram reis, a começar por D. Sancho II (1223-1248), e boa parte da fidalguia da Corte.
Violento incêndio atingiu a igreja a 9 de Junho de 1707. Na reconstrução interveio o pintor florentino Baccarelli.
Novo incêndio na madrugada de 30 de Novembro de 1741 reduziu a cinzas o convento. D. João V contribuiu com avultadas esmolas para a reconstrução, ainda não concluída quando se deu o terramoto de 1 de Novembro de 1755.
Implantação da Ordem Terceira em Lisboa
Desconhecemos a data da primeira Fraternidade da Ordem Terceira de São Francisco da Cidade, assistida pelos Religiosos do convento. O facto de D. Sancho II, denominado o “Capelo” (por vestir à franciscana), demonstra a sua antiguidade. Gregório IX, em bula de 22 de Abril de 1232, concedeu aos Terceiros de Espanha e de Portugal que fossem admitidos nos ofícios divinos em tempo de interdito.
Os irmãos terceiros, por pertencerem a uma “Ordem”, ficavam isentos do serviço militar e de impostos, o que levava muitos a olhar mais para estes privilégios de ordem material do que para o seu bem espiritual. Por isso, pelo fim do século XVI os Governos das Nações obtiveram da Santa Sé a cessação desses privilégios materiais, o que provocou enorme crise. Pelo fim do século XVI, a Ordem Terceira de São Francisco caminhava para a extinção, e também em Portugal.
Revivescência após o Capítulo Geral da OFM de 1606
Fr. Marcos de Lisboa, nas memórias deixadas do Convento de São Francisco de Orgéns de Viseu, regista que em 1557, quando ali era guardião, lançara o hábito aos primeiros terceiros da nova era da restauração.
Pelo fim do século XVI e começo do século XVII começa a observar-se uma revivescência da Ordem Terceira Secular, e precisamente a partir do grandioso convento de São Francisco de Lisboa, na sequência das deliberações tomadas pelo Capítulo Geral, celebrado em Toledo no Pentecostes de 1606.
A fim de reavivar o espírito da Ordem Terceira, chegou ao Convento de São Francisco da Cidade de Lisboa, em princípio de 1615, o P. Fr. Inácio Garcia, da Província de Maiorca. A primeira cerimónia de admissões de eclesiásticos, nobres e plebeus aconteceu no dia 12 de Julho de 1615. Durante os sete meses que se demorou nesta missão, o P. Inácio admitiu ao hábito uns 700 noviços. Em 14 de Julho de 1616 fizeram-se as primeiras profissões. Nesse ano professaram 316 irmãos de um e outro sexo.
Ao retirar, ficou a substituí-lo o P. Fr. Bernardino de Sena, Guardião do Convento, futuro Ministro Geral da Ordem e Bispo de Viseu. Para o ajudar na delicada tarefa, o P. Bernardino escolheu o P. Francisco dos Mártires (futuro Arcebispo de Goa).
Em 1617 forma-se o primeiro Conselho da Fraternidade, que será constituído pela primeira nobreza do Reino.
As admissões continuaram em grande número. Por 1707, os irmãos e irmãs desta Fraternidade passariam de 12 mil e quinhentos.
Auge da Ordem Terceira em Lisboa no século XVIII
O surto da Ordem Terceira exigia um maior e melhor conhecimento da Regra e da legislação complementar. Para o efeito, o “Visitador” ou Comissário daria uma instrução mensal aos irmãos terceiros.
Não podiam ser Irmãos Terceiros os filhos e os netos de mouros, judeus e quem não tivesse ofício ou fazenda.
Seria excluído da Ordem quem pretendesse eximir-se da jurisdição eclesiástica e secular, de pagar dízimos e impostos e aproveitar-se de outras isenções.
O hábito dos homens era uma “túnica com mangas em forma de Cruz, de cor da Ordem, e um cordão; para as mulheres, um escapulário da mesma cor e uma corda.
Os ofícios da Ordem Terceira eram: Ministro (de preferência um Sacerdote professo), Secretário, seis ou oito Discretos, Síndico, Zeladores em número variável, Vigário do culto divino, seis sacristães e Visitador
Nesta nova época de esplendor da Ordem Terceira é de sublinhar a tomada do hábito de irmão terceiro o nosso Rei D. João IV, exactamente na festa de São Francisco de 1652. A Rainha D. Luísa de Gusmão tinha professado anos antes.
Extensão da Fraternidade de São Francisco da Cidade
Na época, esta Fraternidade tinha irmãos terceiros em Sacavém, Sintra, Carnide e de Belém a Oeiras, servidos espiritualmente pelo Padre Comissário ou Visitador.
A alma de semelhante surto deve-se muito ao P. Fr. Amaro da Esperança, de Lisboa, que exerceu a função de Comissário desde 1626 até à morte, em 1656. Tornou-se célebre o centro do Paço Real, onde, a instâncias da Rainha D. Luísa, ia fazer práticas e lançou o hábito da Ordem Terceira a todas as pessoas que nele residiam.
O número dos irmãos foi aumentando em quantidade e qualidade, ao ponto de nos começos do século XVIII serem mais de 12.500. No Capítulo 1704 referiu-se “terem tomado o hábito e começado seu Noviciado 355 irmãos e irmãs e que no mesmo ano tinham professado 316”.
Além de muitos titulares da nobreza, também havia inscritas na Ordem Terceira dignidades eclesiásticas, a começar pelo Patriarca de Lisboa, e muitos Cónegos e Prebendados. O mais espantoso é haver filiados na Ordem Terceira Franciscana Religiosos dominicanos e oratorianos, Religiosas clarissas e outras.
Por decreto do Papa Leão XIII, de 31 de Janeiro de 1893, proibiu-se a filiação em mais de uma Ordem Terceira, e do facto deu conhecimento o Cardeal Patriarca de Lisboa em circular de 20 de Abril de 1897.
Fundação do Hospital por Fr. Domingos da Cruz em 1672
Uma das valências da Ordem Terceira Secular, após a renovação iniciada no começo do século XVII, foi a criação de actividades sociais, em complemento da espiritualidade.
Como o Fr. Domingos da Cruz visitava frequentemente os Irmãos Terceiros enfermos e achacados, resolveu fundar um Hospital ao fundo da Rua do Saco (actual Rua Serpa Pinto), Lançou-lhe a primeira pedra em 4 de Agosto de 1671 e terá começado a funcionar em 1672, ainda que só foi oficialmente inaugurado na festa de São Domingos, 4 de Agosto de 1673. Dispunha de capacidade para alojar 24 enfermos: 12 homens e 12 mulheres.
Dada a ruína em que ficara com o terramoto de 1 de Novembro de 1755, a sua reconstrução iria demorar uns anos largos, pois só a 2 de Março de 1770 são adjudicadas as obras do novo Hospital, obras concluídas apenas em 1779, a deduzir da inscrição latina lida na padieira da porta principal: QUAM ZELUS RENOVAT DOMUS HAEC / FUNDATUR AMORE / HANC CAELUM DICES QUA SERAPHIM / ESSE SOLENT / ANNO DNI M.DCCLXXIX.
Em possível tradução portuguesa: Esta casa, que o zelo renova, / fundamenta-se no amor / Tu dirás que ela é um céu / em que os Serafins costumam habitar / Ano do Senhor de 1779.
Poucos anos depois, em 1786, são aprovados os Estatutos deste Hospital. O texto principia com a afirmação: “A maior caridade que a Ordem pode fazer é ter um Hospital para nele se curarem os nossos Irmãos e Irmãs Terceiras”.
A Extinção das Ordens Religiosas em 1834
Com a extinção das Ordens Religiosas por decreto de 28 de Maio de 1834, o culto na igreja foi entregue à Ordem Terceira e ali se manteve até 1838, quando, por portaria governamental de 6 de Janeiro desse ano, se transferiu para o Hospício de São João Nepomuceno. Nele exerceram os actos mais solenes – excepto a missa diária, que era celebrada na capela interior do Hospital – até 1854. Neste ano assinaram contrato com os Padres Ingleses do Corpo Santo, e naquela igreja se demoraram até 1892, ano em que desfizeram o contrato e passaram para a capela de Nossa Senhora das Mercês, da Rua Formosa. A partir de 1911, a sede da Ordem Terceira da Cidade passou a ser uma dependência do seu Hospital, com entrada na Rua Serpa Pinto, 33 (actual nº 7).
Em 1836, no extinto convento instalaram a Academia de Belas Artes e a Biblioteca Pública (transferida na década de 1980 para o Campo Grande).
Agregações de Frades Menores à Ordem Terceira
Em Setembro de 1843, “Fr. Manuel da Conceição tomou o Santo Hábito e professou na 3ª Ordem de São Francisco” e pagou 6$00. Quer dizer, de Frade Menor da I Ordem passou a Irmão da Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Cidade. Outros se lhe seguiram, incluindo um da Província dos Algarves em Novembro de 1844, outro do convento de Mafra em Agosto de 1845.
O bom serviço das Franciscanas Hospitaleiras (1881-1902)
As Irmãs Franciscanas Hospitaleiras Portuguesas terão entrado em Janeiro de 1881 ao serviço do Hospital da Ordem Terceira da Cidade. A Superiora Geral, Ir. Madalena de Cristo, a 25 de Novembro de 1902, em carta ao irmão Ministro, perante a falta de Religiosas e julgando serem dispensáveis os seus serviços no Hospital de S. Francisco da Cidade, resolveu tirá-las. Sairão no fim desse mês de Novembro de 1902.
Assistência Religiosa da Fraternidade por padres seculares
A 13 de Outubro de 1834 exercia as funções de Padre Comissário o Fr. Jerónimo de Nossa Senhora da Oliveira Figueiredo, já na qualidade de egresso. Sucedeu-lhe o egresso dominicano P. Francisco Piedade de Almeida e Silva de 1843. A seguir, praticamente, entram os padres seculares, que se mantêm até à década de 1940.
Um caso à parte é o do Comissário P. Alfredo Mergulhão Cabral Macedo e Gama, nomeado pelo Conselho da Fraternidade a 1 de Maio de 1903, confirmado pelo Cardeal Patriarca de Lisboa a 30 de Novembro imediato e tomada de posse na capela de Nossa Senhora das Mercês, à Rua Formosa, a 8 de Dezembro, depois de obtidos da Nunciatura Apostólica todos os privilégios das Ordens Terceiras. Deram-lhe a provisão a 9 de Dezembro de 1903. Exercerá o cargo a 1910 e de 1923 a 1944.
Na viragem do século XIX para o século XX há nova legislação, executada pelo novo Irmão Ministro P. Domingos Nogueira, Prior da Lapa (Basílica da Estrela), que leva o cargo de 1902 a 1910 e de 1923 até à morte, ocorrida a 3 de Março de 1944, e pelo Comissário do clero secular P. Alfredo Mergulhão, nomeado em 1903 e substituído por um Frade Menor em 1945.
Regresso dos Frades Menores a Comissários
A 3 de Agosto de 1946, o P. Manuel Taveira da Silva (Ministro Provincial) escreve ao Núncio Apostólico a lembrar que a Fraternidade da Ordem Terceira de São Francisco da Cidade, a partir de 5 de Julho de 1943, “renunciou juridicamente a qualquer situação anterior e está de facto e de jure sujeita à Primeira Ordem”. Não há dúvida de que a Ordem Terceira foi fundada por São Francisco e aprovada pela Santa Sé e que o seu governo e direcção espiritual pertencem à Ordem Franciscana. A Ordem Terceira de S. Francisco da Cidade, em 1843, não dispondo de Franciscanos egressos como Comissários, recorreu ao Núncio Mons. Capaccini, que lhe nomeou um a 3 de Maio desse ano, com a cláusula: “Enquanto não houver Franciscanos em Lisboa”. Ora, os Franciscanos regressaram a Lisboa pelo fim do século XIX, mas só em 5 de Julho de 1943 se decidiu repor até certo ponto a legalidade. De facto, o Ministro Provincial presidiu à Assembleia-Geral de 31 de Janeiro de 1944 e às eleições da Mesa Administrativa, aprovando e confirmando os eleitos. Tendo falecido em 3 de Maio de 1944 o Irmão Ministro Prior Padre Domingos Nogueira, o Provincial nomeou o substituto a 18 de Agosto imediato e proveu outros cargos a 6 de Setembro. Meses depois, a 6 de Dezembro de 1944 aparece nomeada uma Comissão Administrativa por alvará da autoridade civil. Como esta Comissão era anti-canónica, a mesma autoridade civil deu por findo o seu mandato, devido á irregularidade. Os Irmãos Terceiros que a provocaram, manifestando-se publicamente contra a autoridade eclesiástica competente, foram expulsos da Ordem. A 7 de Agosto de 1946, o P. José Alves Pereira escreve ao Ministro Geral a contar a luta da Ordem dos Frades Menores pela direcção da Ordem Terceira da Cidade, pois até o Ordinário do Lugar negava à nossa Ordem a faculdade de nomear Comissários para aquelas fraternidades cujas igrejas não pertencessem à nossa Ordem. Seria uma simples Irmandade ou Pia União, que poderá ser extinta. O Ministro Geral dá-nos razão, e por decreto de 13 de Agosto de 1946, o P. José Alves Pereira aceita a demissão do Ministro Dr. Albino Borges de Pinho, dissolve a Mesa e nomeia a nova Mesa Administrativa, iniciada pelo Ministro Dr. Anacleto Bernardino de Miranda. Se em 1943 a Fraternidade da Ordem Terceira de São Francisco da Cidade reconhece, de alguma forma, a direcção espiritual dos Frades Menores, no entanto, continua a Comissário o P. Alfredo Mergulhão até 1945, mas já sob a tutela do Ministro Provincial dos Franciscanos portugueses.
A situação económica de 1948 a 1977
Nos meados da década de 1940, a situação económica mostrava certa gravidade, e os franciscanos chamaram para a Mesa Administrativa como Tesoureiro o Dr. Anacleto Miranda, que no ano seguinte subirá a Ministro e nessa qualidade se manterá até 1979.
Para ajudar os membros da Mesa a superar a crise, contrataram Américo Godinho para Administrador das obras sociais, com quem terminaram por assinar um contrato de concessão, de 1958 a 1977. Foi seu adjunto o irmão Alfredo Freire.
Finda a concessão a 25 de Dezembro de 1977, o Conselho da Fraternidade assumiu a total responsabilidade da administração das obras sociais, mediante o Irmão Alfredo Freire. Muito graças ao seu esforço e saber, a Fraternidade entrou no século XXI de finanças sanadas e com uma porção de excelentes serviços.
Longe vão os tempos esplendorosos desta Fraternidade, com milhares de irmãos ricos generosos e pobres socorridos, com importante património material que lhe permitia notáveis acções de beneficência. Hoje, 0s irmãos comprometidos não chegam a uma centena, sobre os quais recai a responsabilidade da vida da Fraternidade e das obras sociais que sustenta e dirige, de que é paradigma o excelente Hospital.
Epílogo
Ao longo dos últimos 800 anos, a Fraternidade da Ordem Franciscana Secular da Cidade de Lisboa deu brado, sobretudo nos séculos XVII e XVIII, quando atingiu o máximo esplendor, não apenas em número de irmãos e irmãs, mas também em actos de benemerência, de culto e de vida espiritual.
Com o Liberalismo do século XIX e a consequente extinção do Convento de São Francisco da Cidade, a Fraternidade conseguiu sobreviver. A Concordata entre Portugal e a Santa Sé em 1940 veio dar novo fôlego à Fraternidade, com o regresso dos frades franciscanos à sua direcção espiritual, com as decisões do Concílio Vaticano II e a legislação dele decorrente, incluindo o renovado texto da Regra, aprovada pelo Papa Paulo VI.
O sopro do Espírito Santo continue a inspirar os responsáveis desta Fraternidade de São Francisco da Cidade, para bem dos homens e da numerosa Família Franciscana, bem que reverte finalmente em favor da Igreja a que pertencemos e queremos com qualidade.
Frei Henrique Pinto Rema, OFM, em Janeiro de 2019.
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