CEP – Oito séculos de presença Franciscana em Portugal
Abr 12, 2018
Nota Pastoral da CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA
Com júbilo, gratidão e esperança, aConferência Episcopal Portuguesa associa-se à celebração dos oitocentos anos de presença franciscana no nosso País com a sua mensagem fraterna de Paz e Bem. Não sendo franciscana a pia batismal donovel Reino de Portugal, o cunho franciscano cedo impregnou muito doCristianismo português na vivência da piedade cristológica e mariana, sobretudo na celebração do Natal (presépio), na devoção à Paixão de Cristo (via sacra) e no culto da Imaculada Conceição.
Desejamos que esta celebração jubilar seja ocasião para uma tomada de consciência das sementes franciscanas que ao longo do tempo foram germinando e crescendo na alma portuguesa.
1. Árvore frondosa de numerosos ramos
O Franciscanismo chegou a Portugal em 1217depois de o capítulo geral da recém-fundada Primeira Ordem Franciscana,celebrado nesse ano, ter decidido enviar frades a evangelizar fora da Itália.As primeiras fundações, simples eremitérios, estabeleceram-se em Alenquer eGuimarães. O primeiro mosteiro português da Segunda Ordem foi o das Clarissas de Lamego em 1258. Integra-se também no ramo franciscano de religiosas de clausura a Ordem da Imaculada Conceição (Concecionistas), fundada em Toledo em 1489 pela portuguesa Santa Beatriz da Silva e estabelecida emPortugal em 1625. A Ordem Franciscana Secular,para homens e mulheres que orientam a sua vida cristã no estado secular segundo o espírito do Santo de Assis e designada primitivamente Ordem da Penitência e a seguir Ordem Terceira de S. Francisco, apareceu entre nós ainda na primeira metade do século XIII. A estruturação da Ordem Terceira Regular principiou em finais do mesmo século a partir de agrupamentos de terceiros seculares que adotaram vida comunitária com votos religiosos. O braço masculino, de perfil semelhante ao da Primeira Ordem, já existia no País na primeira metade do séculoXV. O feminino assumiu duas modalidades: mosteiros de clausura e associações religiosas dedicadas à catequese, atendimento de doentes e outras formas de beneficência.
No início do século XVI a Primeira Ordemcindiu-se em três ordens independentes. Em 1517 o Papa Leão X dividiu-a emOrdem dos Frades Menores da Observância (que passaram a ser designadoshabitualmente como Franciscanos) eOrdem dos Frades Menores Conventuais. Oitoanos depois nasceu entre os primeiros um movimento de reforma que o Papa ClementeVII em 1528 aprovou como Ordem dos Frades Menores Capuchinhos.
O Liberalismo interrompeu abruptamentemais de seis séculos de vida conventual franciscana. Em 1833 proibiu-se aadmissão de noviços e no ano seguinte suprimiram-se todos os conventos einstitutos masculinos. Os mosteiros femininos, impedidos de aceitar noviças,iam-se despovoando à medida que as religiosas morriam e eram extintos após ofalecimento da última, ficando o Estado na posse dos edifícios.
Na segunda metade do século XIX, apesar dainterdição da lei civil, a Primeira Ordem começou a reorganizar-se com osfrades de Varatojo (Torres Vedras). Paralelamente, apareceram quatro congregações femininas da Ordem Terceira Regular, aindahoje com destacada presença entre nós: as Franciscanas Hospitaleiras de Calais,atualmente Franciscanas Missionárias de Nossa Senhora, e as FranciscanasMissionárias de Maria, originárias da França; e as Franciscanas HospitaleirasPortuguesas, agora da Imaculada Conceição, e as Franciscanas de Nossa Senhoradas Vitórias, fundadas, respetivamente, em Lisboa e no Funchal pela Beata MariaClara do Menino Jesus e pela Venerável Irmã Maria de S. Francisco Wilson.
Com a I República sobreveio nova extinçãodos institutos religiosos. Um decreto de 8 de outubro de 1910 expulsou do Paístodos os jesuítas, estrangeiros e nacionais, e todos os demais religiosos ereligiosas estrangeiros. Os portugueses foram obrigados a dispersar e a nãoconviver em grupos com mais de três elementos.
Em 1928, desanuviada a situação, as casasde formação dos Franciscanos, então localizadas na Galiza, regressaram aPortugal. Por seu lado, os Capuchinhos estabeleceram-se entre nós em 1934. Omesmo fizeram os Conventuais em 1967, depois duma ausência de quatro séculos.Entretanto, vieram de Espanha quatro congregações femininas da OrdemTerceira Regular: Escravas da Santíssima Eucaristia e da Mãe deDeus, Franciscanas Missionárias da Mãe do Divino Pastor, Franciscanas de NossaSenhora do Bom Conselho e Irmãs Franciscanas da Imaculada. Depois surgiramoutras quatro, de instituição nacional: Fraternidade Franciscana da DivinaProvidência (Fátima), Servas Franciscanas de Nossa Senhora das Graças (Braga),Servas Franciscanas Reparadoras de Jesus Sacramentado (Bragança) e IrmãsConcecionistas ao Serviço dos Pobres (Elvas), estas fundadas pela VenerávelMadre Isabel da Santíssima Trindade. Finalmente, a Ordem Franciscana Secularconheceu notória renovação na segunda metade do século XX.
No mesmo período a colaboraçãointerfranciscana intensificou-se e deu origem a duas realizações maissignificativas: a Peregrinação Nacional Franciscana a Fátima desde 1971 e acriação da Família Franciscana Portuguesa em1978, entidade com personalidade jurídica canónica e civil.
2. Ação missionária
Membros duma Ordem que nasceu missionária, os Franciscanos portugueses desenvolveram privilegiadamente essa dimensão a partir do século XV, integrados na gesta universalista dos Descobrimentos. Essa história missionária não pode contudo dispensar a referência ao seu começo,real e simbólico, com Santo António de Lisboa e o seu encontro providencial, emCoimbra, com os protomártires franciscanos de Marrocos. Também ele missionou por breve tempo em Marrocos antes de iluminar a Itália e a França com a eloquência inflamada da sua pregação.
A partir do século XVI os Franciscanos evangelizaram a Índia e o Brasil onde criaram quatro províncias religiosas,duas das quais ainda hoje perduram em terras de Vera Cruz. No século XVIICapuchinhos italianos e franceses, entre nós conhecidos por Barbadinhos, abriram casas em Lisboa como base de apoio às suas missões no Brasil, em Angola e na costa e ilhas do Golfo da Guiné. No século XX Capuchinhos, Franciscanos e oito congregações femininas trabalharam nas antigas colónias deÁfrica, contribuindo decisivamente para a formação e crescimento das florescentes cristandades desses novos países lusófonos.
3. Obra cultural
Paralelamente ao ministério pastoral, os Franciscanos medievais cedo abriram escolas públicas de gramática, filosofia ou teologia nos conventos de Alenquer, Beja, Coimbra, Évora, Guimarães, Lisboa,Porto e Santarém. A escola de teologia de Lisboa ganhou mais projeção e foi incorporada na universidade de Lisboa pelo Papa Nicolau V em 1453. No séculoXVI a filosofia e teologia da Escola Franciscana ficaram representadas na universidade de Coimbra pela cadeira de João Duns Escoto. Neste século e no seguinte fundaram-se na mesma cidade cinco Colégios Universitários franciscanos da Ordem Terceira Regular e de quatro províncias da Primeira Ordem. Digna de registo, no século XVIII, a ação cultural de Fr. Manuel do Cenáculo Vilas Boas e da Ordem Terceira Regular no convento de Nossa Senhora de Jesus, em Lisboa, hoje sede da Academia das Ciências de Lisboa que herdou a sua artística biblioteca e o recheio desta, valioso em obras clássicas. No nosso tempo a UniversidadeCatólica Portuguesa, criada em 1967, conta desde o início com vários Franciscanos em funções docentes e de governo.
No âmbito do ensino primário e secundário a Família Franciscana, desde fins do século XIX, tem desempenhado papel meritório com destaque para as escolas de diversas congregações femininas.
No campo das letras avultam duas figuras nos séculos XVI e XVII: o arrábido Fr. Agostinho de Cruz, com a unção mística da sua poesia, e Fr. António das Chagas, conceituado escritor espiritual e instituidor do seminário de missionários apostólicos de Varatojo, os quais,literalmente, calcorrearam o País em frutuosas missões populares durante quase dois séculos.
Por fim, também desde finais do séculoXIX, tem sido frequente o recurso à imprensa para difusão de textos de índole variada, a maioria de regular informação e apoio religioso e outros de alto valor cultural e científico. Nesta área destacam-se a revista Voz de Santo António, publicada pelos Franciscanos de1895 a 1910, e, desde meados do século XX, as traduções e edições bíblicas dosCapuchinhos e três revistas: Itinerarium, Bíblica e Mensageiro de Santo António, editadas pelos Franciscanos, Capuchinhos e Conventuais, respetivamente.
4. Intervenção social
De uma família religiosa que tem por lema a pobreza, é de esperar prioridade de atenção aos pobres, naturalmente veiculada em convivial atitude de proximidade, mas também na colaboração e criação de mediações de assistência institucionalizada.
Sobretudo desde finais do século XIX, bom número de congregações femininas e de fraternidades da Ordem Franciscana Secular tem desempenhado papel significativo na fundação e gestão de hospitais e escolas de enfermagem e, em particular, de casas de acolhimento de crianças e jovens e de lares de terceira idade. Não é possível escrever a história contemporânea da assistência social em Portugal omitindo esse contributo.
5. Interpelações à Família Franciscana e àSociedade
O jubileu dos oitocentos anos de presença franciscana em terras lusitanas constitui oportuno momento de interpelação para a vasta Família Franciscana e para a Sociedade.
A experiência de Deus no encontro pessoal de fé com Jesus Cristo assinala a marca identitária do perfil espiritual doPatriarca S. Francisco. O Santo de Assis não irradiava luz própria; refletia a que lhe vinha de Cristo no seio da Igreja. A sua originalidade consistiu em ter sido incansável seguidor de Jesus, um “outro Cristo”, conforme o apelidou ahagiografia medieval. Ou como Teixeira de Pascoaes o definiu em 1927 por ocasião do sétimo centenário da sua morte: “Foste, no mundo, a imagem de Jesus/ Que foi, no mundo, a aparição de Deus.”
Nesta conformidade, os membros da Família Franciscana devem ser também, sempre e cada vez melhor, anúncio vivo e transparente de Jesus em palavras e obras. Se assim for, o Franciscanismo tem futuro nos tempos de hoje apesar dos obstáculos da caminhada.
S. Francisco tem igualmente uma palavra forte a dizer à Sociedade atual. O seu amor à simplicidade e à pobreza é convite a um estilo de vida sóbrio e respeitador da “casa comum” da Criação. A sua mensagem de Paz e Bem é estímulo à promoção da fraternidade universal,fundada não em vago humanitarismo social, mas na consciência agradecida de queDeus é Pai comum de toda a humanidade. A vida consagrada atravessa hoje um momento de acentuada crise de vocações. A Conferência EpiscopalPortuguesa acompanha, todavia, com esperança esta situação de prova que também atinge a Família Franciscana. Entre as razões de tal esperança, sobressai a interpelação suscitada pela encíclica Laudato si’, do PapaFrancisco, sobre o Cuidado da Casa Comum.Não só pela inspiração desta no Santo de Assis, explicitamente assumida no documento, a começar pelo próprio título, como ainda pelos horizontes que abre às preocupações e ações de toda a humanidade. Os filhos de S. Francisco têm naturais motivos para se reconhecerem nelas para superar a presente crise epocal da história da humanidade e como compromisso de fidelidade ao desígnio da própria fundação da Família Franciscana qual a Igreja continua a depositar acalentadoras esperanças.
Fátima, 12 de abril de 2018